Então é nisso que nos tornamos, meu bom amigo?
Era nisso que estivemos pensando nas noites em que, sentados pelos bares da cidade, observávamos o movimento, o ir e vir da modernidade? Era disso que falávamos entre um gole e outro de cerveja e a incerteza que vinha ao amanhecer?
Lixos insones que eramos, acreditando em um mundo terrivelmente poético, diluído no fundo do copo de cachaça.
A poesia só existe para os que transformam a realidade em nuvens espessas, podendo atravessar por ela incólume, sem se preocupar que dissolva em suas mãos algo impossível de segurar ou guardar, que na pele só deixa o frio do contato e uma vaga lembrança, nada mais.
Não sei sobre sua realidade, se senta no sofá da sala para beber e escutar a nostalgia assoviando velhas canções, se afaga o cachorro fiel que lhe caga no tapete uma vez por semana, se abre o livro morto na estante que nem se lembra de ter comprado, se torce o nariz para o sabiá laranjeira madrugador, se o quer morto pelo coração ou se quer que alguem lhe salve.
Salvem o passarinho, e bem longe de você.
Te lembro a história de um outro amigo daqueles tempos, que, perdido na noite, se via entregue ao volante emborrachado do carro a dar voltas pela cidade. Nos parecia tão impossível chegar a uma realidade tão infeliz e solitária, independente do que viéssemos a viver.
Mas e se ao ter tudo, descobre-se não tendo nada? E se o sentir-se satisfeito vier somente ao fim do tanque de combustível? Seria a ultima gota de álcool o fundo do poço? Evitemos subidas meu querido amigo, tentemos as marginais.
Ah! Decidiu subir? Quantos degraus tem esse altar? Se olhar para trás, diga-me, o quão marginal tornou-se aqueles tempos de desordem e obscuridade? E mais, a pergunta que não cala, o que tem nesse enfeitado plano divino, valeu o dizimo pago?
Sinto lhe dizer meu velho, o copo sobre a televisão já não funciona. Temos telas planas e não existe mais espaço para pedir que o tempo mude, orar por um retorno ao passado ou resgatar uma vida não vivida.
Mas você já sabe de tudo isso, não é mesmo? É claro que sabe! Sempre soube!
Quanto a mim? Sim, você vai gostar de saber.
Tornei-me o cachorro raivoso que protege a ninhada e esconde ossos no quintal para roer mais tarde.
Mas veja como a vida é, tornando impossível que me esqueça da localização dos esqueletos, me presenteando com um circulo intimo de fantasmas que teimam em me lembrar qual o cardápio do jantar, para que eu volte a remoer velhas lembranças.
E aqui, meu velho amigo... meu velho e bom amigo... remoo você.
É nisso que nos tornamos, é com isso que teremos de lidar.
Até algum dia.
Quem sabe.
Um comentário:
(gosto de ver que ainda consigo visualizar o enredo das suas crônicas. talvez porque eu mesma converse tanto com esse velho amigo que parece distante de mim, mas que no fundo tudo sabe)
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