Sentado em sua cadeira de costas
flexíveis, atrás da mesa estava o editor chefe, Seu Magela, distinto cidadão,
da nata paulista, separado duas vezes, casado com a filha de um deputado de
renome, cinco filhos e carro novo no meio fio.
Se sentindo um lixo pela ressaca
do dia anterior, o Oswaldo estava lá bem a sua frente, jogado na cadeira,
secando o suor da testa com as costas da mão esperando para saber o que lhe
reserva a nova função.
Seu Magela por outro lado não
tinha real intenção de contratar o mulambento porque, veja bem, cabide de
empregos, ainda mais em um jornal de renome, fica difícil explicar aos olhos
sedentos por coisas erradas, mas o amigo que o trouxe sabia lá de uma ou duas
pendengas que poderiam facilmente ligar o digníssimo Magela a crimes que
custariam muito mais que somente seu emprego, então o negócio foi fechar a boca
e engolir a mosca a seco.
No entanto uma vaga surgira,
minima, e como não tinha fins lucrativos ao jornal serviu bem ao companheiro em
necessidade.
O Magela foi rápido, o negócio
era o seguinte: Me chega todo dia lá pelas dez da noite, recolhe os comunicados
de óbito que a Roseli da recepção vai largar na mesa, veja lá quem morreu e
escreve umas duas linhas de elogio ao defunto, levando em consideração o que o
fulano fazia em vida. Se for alguém importante rasga seda sem dó mas não passa
de quatro linhas se não a coisa fica feia depois. Vai que morre politico? Até
explicar porque usou meia pagina pra fazer um quadrinho de óbito vai ser
difícil. Faz tudo bonito, escreve e manda para a impressão. Terminou vai embora
. E se usar a privada do escritório tenta ficar só nos líquidos ou vai ter de
ir encher o balde com aguá pra ajudar a descer qualquer coisa que tiver por lá.
Com isso o Oswaldo já estava
apavorado! Estava de certo modo feliz por não ter de ir a campo colher noticias
em cenas de crime ou pagar mico em saída de time para o vestiário, mas dai a escrever
sobre gente morta era uma sacanagem, ainda mais sem conhecer nenhum deles
antes, mas o Magela até que facilitou, já que o jornal pedia gentilmente que as
famílias mandassem lá uma foto do presunto ainda com vida em alguma atividade
de que gostava, com a desculpa de que poderiam eventualmente estampar a foto ao
lado do quadrinho, mesmo que em dez anos de jornal nenhuma foto tenha sido
utilizada com o propósito, mas sim para alimentar a imaginação do funcionário
anterior, que dias antes ganhara um quadrinho com algumas palavras reconfortantes
em sua própria seção.
Já no primeiro dia de trabalho
nosso querido Oswaldo passou sufoco. Sentou frente a maquininha de escrever de
seu minusculo escritório , passou os olhos rapidamente por algumas das folhas
com fotos coloridas grampeadas, esfregou a palma da mão na calça para tirar o
suor da ponta dos dedos e suspirou um “seja o que deus quiser”.
Primeiro óbito a gente nunca
esquece e foi justo o da Dona Maria Alcina Mendes, partiu aos 95, família
modesta, na foto aparecia segurando uma vassoura em um corredor de escola, com
um corpinho de 50 anos, meio corcunda, saia rosa até o pé e camiseta branca. Constava morte por idade.
Morre Maria Alcina Mendes, vividos seus 95 anos, varria um corredor
como ninguém.
Passara fácil, abriu sorriso no
rosto encardido, ligou o radinho a pilha no exato momento em que Miltinho
cantarolava “Lembranças” com sua voz macia, uma feliz coincidencia talvez.
Partiu para o próximo, Calvino
Salvador, 88 anos, aparece na foto dentro de um Fusca velho, sorriso no rosto,
gordo, talvez uns dez anos antes de empacotar. Constava morte por asfixia.
Calvino Salvador, 88 anos bem vividos, agora dirige seu Fusca pelo céu.
Pelo céu sim, e agora certamente
o fusca não iria mais engasgar em marcha nenhuma, pensou rindo.
Gostando do resultado o Oswaldo
logo começou a gostar da coisa, e como sempre faz quando gosta de algo, tira a
garrafa de cana da pasta de couro surrado e dá logo uns dois tragos direto da
garrafa. Olhou as fotos sobre a mesa, ergueu a garrafa sobre elas, fez um
brinde a seus novos companheiros de madrugada, lançou um golinho pro santo ao
lado da cadeira e deu mais um gole bem servido.
A cana bateu fundo no estomago
vazio, mandando ao cérebro uma mensagem violenta de que aquele corpo iria
levantar daquela cadeira no pileque já conhecido de dias anteriores, mas o
Oswaldo era forte, e a noite só estava
começando.
O próximo ele conhecia, Dona
Judithe, a solteirona louca que aparecia vez ou outra no boteco para arrumar
alguma companhia, e sem cobrar nada por isso. Na foto ela estava bem
arrumadinha, visivelmente mais magra, usava um sutiã preto que aparecia por
detrás de uma blusa branca . O Oswaldo se lembrava daqueles peitos, mas não se
lembra de ter visto ela usar sutiã nas vezes que apareceu para fazer festa. No
cartão de causa de morte constava morte
por erro cirúrgico durante uma operação no pulmão. Meio bêbado, Oswaldo,
lamentando a perda da conhecida, escreveu lá:
Judithe Apoliana, nos deixa no auge de seus 45 anos. Que os anjos te
recebam de peito aberto.
Oswaldo sorria satisfeito. No fim das contas acabou pagando a Judithe de alguma forma.
Um comentário:
fazia tempos que eu não te lia. você continua tendo um dom.
excelente a história de seu Oswaldo. e certeza a Judithe ficou feliz pela homenagem. que os céus a tenham.
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