28 de maio de 2025

2025

Cheguei tarde da noite.

Não tinha intenção de chegar tão tarde, ou pelo menos não tinha a intenção deliberada de demorar tanto pra chegar. As coisas foram simplesmente acontecendo, uma após a outra, numa sequência sutil no começo mas truculenta quando se percebe a velocidade. A vida é assim mesmo, não é?

Saquei do bolso o molho de chaves, algumas amareladas pelo tempo, desgastadas. Lembrei de colocar marcações em algumas delas em algum momento, trapinhos de papel com durex que hoje estão carcomidos, letras quase sumindo. Outras só se juntaram as demais para facilitar o acesso a elas em algum momento, como aquela do cadeado da bicicleta que nunca mais andei, ou da porta do apartamento na Brigadeiro Luis Antônio que deixei a anos atrás. Uma coleção de pedacinhos de metal e suas fechaduras nostálgicas.

Mas nessa noite, essa em que cheguei mais tarde do que deveria, eu sei qual chave pegar. A verdade é que ela nunca saiu da posição no aro metálico único dela. Esteve sempre lá quando sem querer colocava a mão no bolso e sentia as ranhuras atipicas que só ela tem, ou quando ao jogar o conjunto sobre a mesa ou prender no suporte da parede, o olhar se perdia em seu brilho e no detalhe azulado de plástico do nome do fabricante.

No fim não teve suspense, não teve ranger ou dobradiça enferrujada. A máquina funcionava perfeitamente bem e abraçou a chave em suas travas como se esperasse a uma eternidade por ela. 

Aquela porta, a que levei anos demais para reabrir, a que deixei para trás sem entender porque,  a que ignorei quando passei em frente perdido, a que me encarou quando parei de frente resoluto em demolir tudo, a que me escorou a cabeça quando estive sozinho em delírios obscuros, a que como objeto ainda que incólume tenha esperado por tanto tempo nesse banimento de memórias, se abriu tranquila como quem diz: já era hora meu bem, seja bem vindo de volta. Porque demorou? Por onde andou? Entre! Me conte novas histórias, o tempo segue firme lá fora, mas não se engane, ele passa aqui dentro também, ainda que macio. Aproveite o espaço. Ainda que muito tarde, é cedo para começar e ainda temos algum tempo. 

E assim aqui estou, depois de tanto sobreviver, de tanto viver, de tanto bater e tanto apanhar, de tanto chorar e sorrir e afagar e partir, nessa noite única como somente ela pode ser, voltei ao meu espaço.

Ainda que o silêncio me olhe do lado oposto, não me espanto ou me incomodo. Tomo de volta meu espaço, moverei meus móveis como e quando quiser, deitarei onde for de minha vontade e largarei frases soltas por onde puder. Ainda que no fim todo esse aglomerado de pensamentos vivos acabe por se tornar meu legado (e essa é apenas uma esperança para dias que virão), essa noite devo apenas apreciar mais uma vez a luz e a brisa leve entrando pela porta aberta, afinal, a vida é assim mesmo, não é?

20 de dezembro de 2015

Sobre o monologo irreal

Durante o dia devo criar em média uns mil e quinhentos textos diferentes em minha cabeça.
Ao longo do dia esqueço um por um, metodicamente, como se nada tivesse acontecido.
Ai chega o dia em que encontro alguém para discutir, filosofar, argumentar sobre assuntos diversos de forma agressiva até, e me deparo com algo estranho.
Como pode alguém que argumenta, que pensa e forma uma ideia "x" querer a todo custo expor sua ideia e não escutar nada do que o outro tem a dizer? Como lapidar sua própria certeza sem colocar a prova sua ideia escutando o que outras pessoas tem a falar sobre o caso?
Respeito a ideia de cada ser humano, ainda que não seja a mesma que a minha, que não a aceite, e ao escutar pela primeira vez tento não julgar o que me é dito exatamente para não avaliar precipitadamente.
Mas e quando alguém impõe o que pensa de tal maneira a ir contra qualquer coisa que você diga, inclusive insistindo em um monologo pré montado, bloqueando até qualquer tipo de resposta por não aceitar ser interrompido?
Não sou extremista, nunca gostei de extremismos por não acreditar que eles forneçam uma ideia fiel a realidade, mas sim algo viciado pela opinião própria e fatos corrompidos. Sempre acreditei que exista casos e casos e que tudo deve ser avaliado de forma neutra e exclusiva, pois, para mim, a vontade humana de fazer o bem ou o mal não se pode ser colocada em uma tabela com uma média, mas sim vista sob o aspecto particular de cada indivíduo.
Ou seja, antes de julgar o ocorrido, entenda a história, compreenda o que aconteceu, e conheça quem participou, um por um. Só assim é possível ter uma ideia mais próxima do ocorrido.
Exemplo? Acreditar que pessoas pobres são segregadas pelo meio em que vivem, pelo capitalismo ou por qualquer outra força externa me parece pouco provável, já que cada um é dono de si mesmo e pode guiar seus passos muito bem a partir do momento em que tem plena noção do que se está fazendo, e hoje em dia, me corrijam se eu estiver errado, acontece muito cedo, ou pelo menos muito mais cedo do que quando eu tinha 15 anos, anda que exista a necessidade de se estudar caso a caso.
O fato é que todos podemos aprender, ganhar mais conhecimento e mudar nosso mundo particular, indiferente do meio em que vivemos ou da forma que fomos criados.
Cada um tem poder sobre seu próprio destino e sobre o que quer fazer a seguir.
Existem milhares de atenuantes e problemáticas, já que estamos sempre suscetíveis as vontades de terceiros ou a acasos fora de nosso controle, mas inevitavelmente todos iremos viver até onde for possível, e essa é uma escolha particular, uma vontade própria, um ato deliberado de uso do pensamento individual para seguir em frente.
Então não me venha com essa história de que não temos poder sobre nossas vidas, de que não tenho forças para alcançar níveis maiores ou ser alguém melhor ou com mais recursos.
Só mexendo com meu livre arbítrio pra me fazer escrever assim mesmo...

20 de outubro de 2015

Velho amigo

Então é nisso que nos tornamos, meu bom amigo?
Era nisso que estivemos pensando nas noites em que, sentados pelos bares da cidade, observávamos o movimento, o ir e vir da modernidade? Era disso que falávamos entre um gole e outro de cerveja e a incerteza que vinha ao amanhecer?
Lixos insones que eramos, acreditando em um mundo terrivelmente poético, diluído no fundo do copo de cachaça.
A poesia só existe para os que transformam a realidade em nuvens espessas, podendo atravessar por ela incólume, sem se preocupar que dissolva em suas mãos algo impossível de segurar ou guardar, que na pele só deixa o frio do contato e uma vaga lembrança, nada mais.
Não sei sobre sua realidade, se senta no sofá da sala para beber e escutar a nostalgia assoviando velhas canções, se afaga o cachorro fiel que lhe caga no tapete uma vez por semana, se abre o livro morto na estante que nem se lembra de ter comprado, se torce o nariz para o sabiá laranjeira madrugador, se o quer morto pelo coração ou se quer que alguem lhe salve.
Salvem o passarinho, e bem longe de você.
Te lembro a história de um outro amigo daqueles tempos, que, perdido na noite, se via entregue ao volante emborrachado do carro a dar voltas pela cidade. Nos parecia tão impossível chegar a uma realidade tão infeliz e solitária, independente do que viéssemos a viver.
Mas e se ao ter tudo, descobre-se não tendo nada? E se o sentir-se satisfeito vier somente ao fim do tanque de combustível? Seria a ultima gota de álcool o fundo do poço? Evitemos subidas meu querido amigo, tentemos as marginais.
Ah! Decidiu subir? Quantos degraus tem esse altar? Se olhar para trás, diga-me, o quão marginal tornou-se aqueles tempos de desordem e obscuridade? E mais, a pergunta que não cala, o que tem nesse enfeitado plano divino, valeu o dizimo pago?
Sinto lhe dizer meu velho, o copo sobre a televisão já não funciona. Temos telas planas e não existe mais espaço para pedir que o tempo mude, orar por um retorno ao passado ou resgatar uma vida não vivida.
Mas você já sabe de tudo isso, não é mesmo? É claro que sabe! Sempre soube!
Quanto a mim? Sim, você vai gostar de saber.
Tornei-me o cachorro raivoso que protege a ninhada e esconde ossos no quintal para roer mais tarde.
Mas veja como a vida é, tornando impossível que me esqueça da localização dos esqueletos, me presenteando com um circulo intimo de fantasmas que teimam em me lembrar qual o cardápio do jantar, para que eu volte a remoer velhas lembranças.
E aqui, meu velho amigo... meu velho e bom amigo... remoo você.
É nisso que nos tornamos, é com isso que teremos de lidar.
Até algum dia.
Quem sabe.

23 de outubro de 2014

Trunfo

Procuro por um trunfo
nada demais
uma carta de momento
um momento numa mão

Um trunfo pra jogar "na lata"
pra gritar na cara do ladrão
virar o momento do jogo
lançar as peças pro ar

Preciso de uma jogada de ouro
uma luz inesperada
uma mudança nos acontecimentos
um brilho vindo do escuro

E vira
pode apostar
como quem não quer nada
como quem não deveria estar lá

E vira
como uma brisa numa tarde
ou o sopro do inesperado
um acontecimento esperado


27 de janeiro de 2014

O Cobrador

'Que porra é essa Oswaldo? Tá ficando louco? Quer me foder? Se os acionistas lerem essa merda eu tô perdido!"

Seu Magela não se aguentava, vermelho de raiva, suando pelas temporas, gotejava na camisa social encardida, amarelada.

O Oswaldo travado nas quatro rodas, congelado na cadeira, sorriso mais pra um quarto de boca.

O que aconteceu é que no dia seguinte, logo pela manhã, alguns leitores revoltados com a pseudo homenagem, resolveram ligar para a redação e meter a boca!

Quem em sã consciência diria "receba de peito aberto" alguém com uma morte tão terrivel quanto a Judithe teve? Isso não pode, não é cabivel! Esse cara tem de ser esquartejado em praça publica! - disse um dos leitores.

O fato é que pegou mal, mas não tinha como voltar atrás.

O Magela, preso pelo saco, deu sermão mas não demitiu. Mandou ficar esperto e parar com a palhaçada, pensar antes de escrever, mas o coice das pessoas foi tão forte que o Oswaldo ficou triste.

Pô, ela era boa... e era boa também... tá certo, tô errado... quer saber, vou lá prestar homenagem... me ajudou tanto que não posso deixar passar batido. Vou lá prestar homenagem.

E assim o Oswaldo saiu da sala, rabo entre as pernas, pensando no mal que fez pra pobre da Judithe, que a unica coisa que fez de errado foi se vender, ainda que tenha sido por um bem maior... ou menor... dependendo do cliente...

A Judithe demorou pra ser enterrada. Como o erro foi do médico, o legista responsavel pelo corpo, enquanto tentava levantar alguns trocados para fazer um laudo positivo a favor do dignissimo doutor, acabou levando mais tempo que o necessario e o enterro acabou atrasando para a tarde daquele mesmo dia em que Oswaldo saia do escritório.

E assim, lá pelo meio da tarde, o Owaldo pegou o ônibus, todo arrependido, em direção ao cemitério. Ia dar tempo de chegar no enterro e prestar as ultimas homenagens, talvez dar ajuda a familia, mesmo que ele precise mais de ajuda do que qualquer outro.

Levou algum tempo no terminal, mas o ônibus chegou. Subiu, pagou a passagem e sentou no banco bem ao lado do cobrador, e mal sentou o danado, com um sorriso insano, perguntou:

"Enterro moço?"

O Oswaldo, assustado respondeu de pronto:

"Pois é..."

Um sorriso surgiu no rosto do rapaz sentado no banco lateral, como se ele estivesse esperando exatamente aquela resposta.

" Enterros são complicados, não fique assim não. Todo mundo morre, você vai morrer, eu vou morrer, todo mundo vai pro saco, a vida é assim. Mas sabe o que é legal? Os mortos! São lindos! Inocentes! Eles morrem e puff! Lá tá um corpo, puro de tudo! Qual o nome do senhor?"

" Oswaldo... você sabe...?"

" Lazaro!"