5 de julho de 2009

A Viagem, a Porta e a Baleia


Terminal rodoviário do Tiete, lá pelas tantas da manhã, Casa do Pão de Queijo lotada de pessoas carregando malas e mais malas, cada qual para um canto diferente do meu Brasil.
Compro minha passagem em uma cabine, igual a tantas outras cabines, com uma atendente de cabelo preso e lápis forte nos olhos para disfarçar as olheiras, igual a tantas outras atendentes espalhadas nas cabines.
Tento a sorte em um espresso mal tirado, com cara de quem vai triturar meu estômago, mastigo uns dois pães de queijo com sabor de polvilho acentuado, uma garrafa de água para os momentos de seca durante o caminho e bora procurar o portão de onde vai sair meu ônibus.
Uma mochila cheia de roupas, um livro, alguns trocados para as paradas em cidades sórdidas onde o cartão de débito não chegou, meu celular para entrar em contato com o mundo e um amontoado de musicas no mp3 para distrair.
Me sentei em um banquinho desconfortável, bem em frente ao portão, uma musiquinha ia embalando uma vontade crescente de tirar uma soneca, quando uma mãe e sua filha resolvem sentar ao meu lado.
Podia ver uma infinidade de ônibus chegando e saindo a todo momento, pessoas se abraçando, pessoas sem ter quem abraçar, outras que sequer pareciam precisar de um abraço de boa viagem, mas tudo bem. São apenas pessoas no fim das contas.
Peguei meu livro e tentei ler algumas paginas, e, de pronto, a pequena garota no colo da mãe já se interessou pelos desenhos espalhados em algumas paginas.
Olhava do livro para mim, de mim para o livro, do livro para a mãe, e um sorriso gigantesco a cada pagina que eu virava para revelar mais um desenho em preto e branco.
- Olha mãe, um gato!
e depois
- Olha mãe, um cachorro!
e depois
- Olha mãe ele tem uma baleia!
Baleia?
Perai, onde diabos ela viu uma baleia?
Olhei desconfiado para a garotinha, fiquei intrigado, rodei o livro, olhei a capa e contracapa, olhei as bordas, olhei pagina por pagina, e nada de baleia.
- Olha mãe, no dedo dele, tem uma baleia!
Foi então que descobri.
Semana passada foi o que posso chamar de principio do caos.
Lembro bem do dia em que tudo começou.
Sai de um treinamento que já vinha consumindo toda minha manhã, e por trabalhar no turno da noite, estava exausto, só conseguia pensar em correr até em casa e tirar uma boa soneca, para enfim acordar duas horas depois e ir trabalhar tranquilamente.
Teria sido brilhante, se meu despertador tivesse trabalhado da forma como se espera que ele trabalhe, mas acredito que assim como eu, acabou por resolver tirar uma soneca também, ou puramente esquecer que tinha de funcionar.
Dormi mais que duas horas, acordei atrasado, me rasguei no banheiro ao fazer a barba, esqueci metade do uniforme em casa, assim como o celular que ficou sob uma pilha de roupas na cama.
Sai batendo a porta ainda com o cabelo molhado, nem pensei em esperar pelo elevador. moro no segundo andar, tenha piedade!
Fui pela escada de incêndio mesmo, cruzando porta e contra fogo em duas passadas, mas tinha esquecido tanta coisa para trás que acabei por esquecer os dedos também.
A porta de incêndio fechou com raiva, deixando bem claro o porque de sua função. Pegou três dedos em uma porrada só, bem em cima da unha.
Dor, espasmos percorrendo meu pulso, os dentes rangendo para segurar um palavrão.
Abanei a mão para ver se parava, mas dor boa é aquela que persiste, e essa era das melhores!
Olhei os dedos para contabilizar o estrago, e para minha surpresa, apenas um dedo foi afetado de forma critica.
Tinha sangue, preto, obscurecido, formando uma pequena poça entre a carne e a unha.
Mas não tinha tempo para contemplar a obra da natureza em meus dedos. Sai correndo gemendo baixinho.
Ai, passado uma semana, sentado ali naquele banco de plástico do terminal, fui parar mais uma vez para ver a obra divina, que apenas a criança percebeu.
O sangue por debaixo da unha tinha secado, provavelmente um pouco dele deve ter saído ou era apenas roxo do impacto, mas o formato presente foi o que despertou o interesse geral.
O pequeno desenho feito a sangue, de ponta cabeça, realmente parecia uma pequena baleia, daquelas que se vê em desenhos animados. A cabeça enorme e redonda, um rabo curto, sendo que na ponta, forma-se uma pequenina bolinha.
Agora eu era o rapaz do terminal, com um livro cheio de desenhos, e uma baleia no dedo.
As vezes tenho vontade de voltar a ser criança...

2 comentários:

Ana P. disse...

Bom, não confie em despertadores.

E acredite, ser criança não depende necessariamente da sua idade ou do seu tamanho.

Em compensação, os médicos têm vários remédios para tratar disso. Tolos. Quem precisa ser tratado são eles!

Bia disse...

Adoro o acaso...q te faz cruzar com uam criança que enxerga uma baleia no seu dedo!A vida é muito engraçada...e momentos como esse fazem um dedo dolorido virar desenho animado!!rs
Copo meio cheio....kkkk